Uma História Com Quase 50 anos em Agronomia
ze duarte

O Professor Catedrático aposentado do Instituto Superior de Agronomia, Francisco Castro Rego, Vice-Presidente do Hot Clube de Portugal, deixa um pequeno testemunho pessoal em homenagem a José Duarte, um dos grandes divulgadores do jazz clássico e contemporâneo em Portugal.

Como explica o Professor Francisco Castro Rego, Zé Duarte foi convidado a realizar umas sessões, no ISA, onde o objetivo era o de dar a conhecer o Jazz e a sua história, aos alunos.

Morreu no final de março de 2023 o grande divulgador do Jazz José Duarte. Em homenagem, quero aqui deixar um pequeno testemunho pessoal.

Conheci há mais de meio século o Zé Duarte, como muitos jovens da minha geração, pela voz inconfundível nos 5 minutos de Jazz. Ouvia-o na rádio todas as noites, religiosamente na altura em que era suposto rezar, como uma devoção ou uma receita que a medicina sugeria tomar em doses diárias pequenas para se ficar imune à má música. O bichinho tinha sido transmitido pelo outro grande senhor do Jazz, o Luiz Villas-Boas, colega do meu Pai no Liceu Gil Vicente, que tive a grande sorte de poder acompanhar durante toda a sua vida desde 1971 quando me aceitou como rapaz de recados nos Festivais de Cascais. Mas as doses diárias eram em 5 minutos.

Fui estudar para o Instituto Superior de Agronomia. No 25 de Abril de 1974 estava no meu segundo ano. Tempos de estudo, mas também de grande excitação revolucionária. A direção da Associação de Estudantes tinha como referências políticas máximas a China de Mao ou, em alternativa, a Albânia de Enver Hoxha. A música que se ouvia nos intervalos das aulas tinha uma seleção muito restrita em que dominava o Tino Flores. O Zeca Afonso não entrava na seleção por não ter mostrado ser suficientemente revolucionário quando uma vez se recusou a discutir com os estudantes de Ciências. Ouviam-se por vezes uns ruídos quase musicais de um disco cuja capa, lembro-me bem, parecia ser o próprio Mao-Tse-Tung a jogar ping-pong. Quando a direção mudou, em 1975, para uma esquerda mais moderada, fui logo apontado para delegado na “Sonora”, uma pequeníssima e frágil estrutura construída no campo superior esquerdo do bar do senhor Raul, de onde se convocavam as célebres Reuniões Gerais de Alunos (RGAs) e de onde saíam os sons que nos acompanhavam nos intervalos das aulas.

Neste contexto turbulento, decidi divulgar a música de que gostava, o Jazz do Villas-Boas e do Zé Duarte. Comecei timidamente a trazer os meus discos de casa e a tentar fazer entrar nos ouvidos dos e das colegas o Louis Armstrong, a Ella Fitzgerald e outros que me pareciam poder ter uma aceitação geral. Primeiro engano. O Jazz tinha como pecado original ser Americano e, para os que tinham a China ou a Albânia por referência, era música contra revolucionária e não deveria ser permitida. A discussão começava. Eu argumentava que o Jazz era uma música de liberdade, uma música negra importante para a luta pela igualdade. Este argumento colhia. Mas, ainda assim, era Americano… As dúvidas continuavam.

Era uma altura em que frequentei muito o Hot Clube de Portugal, de que me fiz sócio nesse ano de 1975. Cruzava-me com os grandes do Jazz que eu venerava. Músicos como o Rão Kyao ou divulgadores como o Zé Duarte. Creio que foi aí, no bar do Hot, animado pela coragem revolucionária da época e talvez por duas cervejas (não havia dinheiro para mais) decidi abordar o Zé Duarte. Tive os meus 5 minutos de lamentação por não conseguir levar o Jazz para Agronomia e o Zé Duarte disse-me que podíamos falar disso em sua casa. Dias depois, com a timidez de volta, bato à porta do Zé Duarte. Voltei a falar-lhe no assunto e logo combinámos que a solução passava por explicar aos estudantes de Agronomia o que era o Jazz e a sua história. Fiquei radiante. Era isso mesmo que eu precisava. E ter o Zé Duarte, a voz dos 5 minutos, nessa divulgação era o máximo.

Voltei uns dias a sua casa depois para programar a sessão. No escritório todo recheado de cartazes e discos o Zé Duarte rapidamente passou da fase curiosa à fase generosa. Começou a testar os meus pobres conhecimentos. E começou a propor músicos e temas para a primeira sessão. Eu ia entrando no seu mundo. Lembro-me como se fosse hoje do tema que ele queria como inicial, Matilda, creio que cantado pelo Harry Belafonte. Ele punha o disco e cantava com grande entusiasmo Matilda ao mesmo tempo do Harry Belafonte. E eu, um pouco aflito de início, dei por mim a juntar-me ao Harry Belafonte e ao Zé Duarte a cantar Matilda, senhora e música que até aí desconhecia por completo.

Entusiasmado, decidi investir na divulgação da primeira sessão. E achei que o melhor seria fazer uma pequena provocação. Estava muito interessado na obra do Boris Vian. Músico de Jazz, com uma filosofia de anarquismo surrealista desconcertante que, como o Jazz, me seduzia. Decidi traduzir como pude e publicitar um texto em que Boris Vian falava com a ironia conhecida do perigo do Jazz para a saúde das pessoas e das sociedades. Achei que esta provocação iria intrigar e chamar os colegas para a sessão. Segundo erro. Vários deles vieram perguntar-me se o Jazz era assim tão mau porque raio é que eu o ia divulgar. Ironicamente tive de ser eu a passar pela dificuldade de explicar uma ironia.

O Zé Duarte ria-se da minha ingenuidade. Mas até ao início da sessão no ISA eu não sabia o que iria acontecer. Haveria alguma manifestação anti-americana? Haveria boicote por causa do Boris Vian? Tinha preparado o Zé Duarte para todas estas possibilidades. Ele parecia que até achava graça aos meus receios. Ele levava os seus discos, eu levava o gira-discos e os altifalantes de casa dos meus Pais e lá fomos. Contra todas as minhas expectativas a sessão foi muito calma e boa. Não eram muitos os colegas, vinte ou trinta. Estavam lá todas as tendências. Não sei se se preparavam para aí fazerem alguma contestação. Talvez. Mas o modo como o Zé Duarte comunicava, a voz dos 5 minutos, o seu entusiasmo, a qualidade da música, as histórias, tudo fez render a assistência. Creio que em vez da hora prevista foram duas horas. Falou-se de política, de cultura, do Boris Vian, da América, da música negra, de tudo. Foi um sucesso.

Na preparação da sessão o Zé Duarte tinha-me indicado, como numa aula, as referências de artistas e de livros que os alunos interessados poderiam consultar. Copiei essa folha para os participantes e guardo com gosto o original da folha de apoio que ele criou e eu dactilografei.

Fizemos uma segunda sessão, bem pacífica, com autores mais modernos (na altura). O estilo de Chicago era importante. Mais descontraído fiz uma aguarela, talvez copiada da capa de um disco, para ajudar à divulgação que não levantou, desta vez, qualquer dúvida ou contestação. Os colegas vieram, participaram e gostaram.

Depois das sessões, como responsável da “Sonora” nunca mais tive dificuldades em fazer ouvir em Agronomia o meu Jazz, o que aprendia com o Villas-Boas e com o Zé Duarte.

Acabei o curso, rumei para Trás-os-Montes, perdi o rasto do Zé Duarte. Voltei a cruzar-me com ele curiosamente quando, apesar da diferença das idades, tínhamos filhas da mesma idade que se conheceram e ficaram boas amigas no colégio. Mas eram encontros muito esporádicos.

O que me marcou no Zé Duarte foi a generosidade com que aceitou fazer a divulgação do seu Jazz na minha Agronomia, a sua paciência para com os alunos e a vontade de os fazer gostar da sua Música. Em doses diárias de 5 minutos tomadas à noite antes de dormir, ou em sessões de divulgação como as de Agronomia.

Finalmente, tenho duas últimas palavras sentidas para o Zé Duarte: Obrigado e Matilda !